Carlos Brandão Ildefonso
Advogado e professor universitário.
Até mesmo os economistas “de esquerda” concordam sobre a necessidade de uma reforma da Previdência. Aliás, a ex-presidente Dilma Rousseff tentou aprovar uma minirreforma, através da Medida Provisória 664 de 30/12/2014, mas a péssima relação entre Governo e Congresso naquele momento desvirtuou a MP.
A dúvida, então, paira sobre o que deve ser modificado. Reflitamos sobre alguns dos pontos contemplados pelo texto aprovado em primeiro turno pela Câmara:
Foi aprovada a redução do valor do benefício de auxílio-reclusão para um salário-mínimo. Em 2018, a média desse benefício foi de aproximadamente R$ 1.100,00, quando o salário-mínimo era R$ 954,00. É o benefício menos numeroso da Previdência Social brasileira. Apenas aproximadamente 7% dos presos brasileiros ensejam o pagamento de auxílio-reclusão a seus dependentes. Aproximadamente 80% dos recebedores de auxílio-reclusão são crianças e adolescentes, filhos de pessoas presas. Em todos os casos, o segurado preso deve ter baixa renda (em 2019, renda mensal inferior a R$ 1.364,43). É benefício que consumiu, em 2018, apenas 0,4% dos recursos da Previdência. Em vista dos números, não se pode concluir que é reduzindo o valor do auxílio-reclusão, ou seja, reduzindo alimentos para crianças e jovens vulneráveis, de baixa renda, que o Brasil se tornará melhor e que a Previdência Social brasileira se tornará mais justa ou mais moderna.
Foi aprovada a impossibilidade de consideração de tempo de contribuição feita, pelo empregado, sobre remuneração inferior ao salário-mínimo. Historicamente, o trabalhador empregado que trabalha em meio horário, por exemplo, pode ter remuneração inferior ao salário-mínimo. Nesses casos, a contribuição previdenciária é feita sobre o valor proporcional da remuneração, inferior ao mínimo, e havia consideração do tempo de contribuição, com futuro direito de receber benefícios no valor de um salário-mínimo. Parte-se da premissa de que nenhum brasileiro, por exemplo, trabalhe somente 4 horas diárias e receba 50% do salário-mínimo de remuneração, por desejo próprio, mas sim por inexistência de trabalho mais rentável. O trabalho em tempo parcial ganhou mais relevância com a Reforma Trabalhista, que instituiu o trabalho intermitente (art. 452-A da CLT), que permite a existência de contrato de emprego, com poucos dias de trabalho no mês e consequente remuneração inferior ao mínimo. O texto da Reforma da Previdência pretende retirar do segurado o direito de ter o tempo de trabalho e contribuição considerados para fins previdenciários, em caso de remuneração e contribuição inferior ao mínimo. Ou seja, o trabalhador empregado, que ganha menos que o salário-mínimo, para ter esse tempo considerado para fins previdenciários, deverá complementar suas contribuições, com uma renda que ele não tem, ou agrupá-las. Ou seja, aqueles trabalhadores mais humildes, com menor remuneração, perderão tempo de contribuição.
Foi aprovada a limitação do direito a aposentadoria especial. Ela é mais precoce, pois destinada aos trabalhadores que exercem suas atividades em condições que prejudicam a saúde ou integridade física. Em geral, são trabalhos expostos a agentes químicos (poeiras, vapores de produtos químicos etc), físicos (ruído, calor ou frio extremos, vibrações etc) ou biológicos (contato com doentes, secreções etc). A jurisprudência ampliou tais situações para incluir alguns trabalhos perigosos como ensejadores de aposentadoria especial, como, por exemplo, a eletricidade e a vigilância armada. Afinal, o trabalho perigoso prejudica indiretamente a saúde do trabalhador, devido ao estresse de saber que, ocorrendo acidente, tentativa de assalto etc, o risco de morte é aumentado. Atualmente, a maioria das aposentadorias especiais é deferida aos 25 anos de contribuição do trabalhador, sem requisito de idade mínima. Foi aprovada a idade mínima de 60 anos de idade para tais trabalhadores. O que nossos legisladores não compreenderam é que tais profissionais, em geral, aos 50 ou 53 anos de idade, em muitos casos, aparentam ser idosos e apresentam grande desgaste físico e mental devido ao trabalho nocivo à saúde. Não conseguirão se aposentar. Muitos ficarão desempregados, pois não conseguirão se manter em trabalhos especiais e a saúde estará debilitada.
O texto da Reforma, ainda, exclui a especialidade do trabalho perigoso. Não se compreende como a mesma proposta de emenda constitucional defere aposentadoria mais precoce a policiais, que exercem trabalho perigoso, mas proíbe aposentadoria mais precoce para vigilantes armados, que igualmente desempenham trabalho perigoso. Entendemos que, se o Governo atual está determinado a instituir idade mínima também para os trabalhadores em condições especiais, essa idade deve ser compatível com a realidade deles.
A reforma poderia promover a economia de recursos retirando de quem não precisa dos benefícios, e não dos mais humildes. Como exemplo, pode-se mencionar a restrição ao acesso ao benefício de pensão por morte para o caso de pessoas muito abastadas. O Brasil tem alguns milhares de pessoas com patrimônio de centenas de milhões de reais, ou até dezenas de bilhões. Falecendo um empresário com tal patrimônio, faria alguma falta para sua família um benefício de pensão por morte, que seria pago à esposa, no valor de R$ 4.000,00 ou R$ 5.000,00 mensais, por exemplo? Sem dúvida não. Não se compreende os motivos pelos quais uma medida como essa não é proposta e discutida.
Paradoxalmente, o texto original da Reforma, apresentado pelo Governo atual, previa inclusão de requisito de patrimônio máximo de R$ 98.000,00 para acesso ao benefício de prestação continuada. Trata-se de benefício assistencial, no valor de um salário-mínimo, para pessoas extremamente carentes, sem renda ou com baixíssima renda, idosas ou com deficiência. Se uma pessoa nessas condições fosse proprietária de um barracão em uma comunidade, avaliado em R$ 100.000,00, o que não é raro ocorrer, não haveria direito ao benefício.
A Reforma hoje discutida é menos agressiva do que as já aventadas no passado, mas ainda é tempo de ser aperfeiçoada, já que, em alguns pontos, reduz direitos dos mais pobres e mantém direitos, até mesmo desnecessários, dos mais ricos.